Novas aves da Amazônia
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Nova espécie de gralha do gênero Cyanocorax, já ameaçada de extinção: encontrada apenas na borda de campinas naturais do sul do Amazonasnda |
Quinze espécies são descritas simultaneamente, na maior descoberta da
ornitologia brasileira em 140 anos
Revista
FAPESP
MARCOS
PIVETTA | Edição 207 - Maio de 2013
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Desde a
segunda metade do século XIX a ornitologia brasileira não dava uma contribuição
tão significativa para ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade: 15 novas
espécies de aves da Amazônia nacional serão formalmente descritas pela primeira
vez numa série de artigos científicos previstos para serem publicados em julho
num volume especial do Handbook of the birds of the world, da espanhola
Lynx Edicions. Esse tomo fecha uma coleção de 17 livros que, por seu caráter
enciclopédico e didático, é adotada como fonte de consulta por ornitólogos
profissionais e amadores
Os autores
das descrições pertencem a três instituições nacionais de pesquisa – Museu de
Zoologia da Universidade de São Paulo (MZ-USP), Instituto Nacional de Pesquisas
da Amazônia (Inpa), de Manaus, e Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de Belém
– e ao Museu de Ciência Natural da Universidade Estadual da Louisiania
(LSUMNS), Estados Unidos. Os ornitólogos não apresentavam ao mundo, de uma só
vez, numa única obra, um conjunto tão numeroso de novas aves brasileiras desde
1871, quando saiu o livro Zur Ornithologie Brasiliens. Nessa obra,
escrita pelo austríaco August von Pelzeln (1825-1891), foram divulgadas 40 espécies
de aves coletadas pelo naturalista Johann Natterer (1787-1843), também
austríaco, em suas viagens pela Amazônia brasileira.
Onze das
novas espécies são endêmicas do Brasil e quatro podem ser encontradas também no
Peru e na Bolívia. Oito ocorrem somente a oeste do rio Madeira, na parte
ocidental da Amazônia; cinco habitam exclusivamente terras situadas entre esse
curso d’água e o rio Tapajós, no centro da região Norte; e duas vivem apenas a
leste do Tapajós, no Pará, na porção mais oriental da floresta tropical. No
volume especial do Handbook, os autores descrevem a morfologia (formas e
estruturas), a genética e a vocalização (canto e sons) das novas espécies. Por
meio de mapas específicos para cada espécie, mostram ainda seus locais de
ocorrência. No entanto, até que o livro seja oficialmente publicado, o nome
científico e alguns detalhes sobre a anatomia e o modo de vida das novas
espécies não podem ser divulgados.
Dessas aves até agora desconhecidas e sem registro na literatura
científica, a maior e mais espetacular é uma espécie de gralha, do gênero Cyanocorax,
com cerca de 35 centímetros de comprimento, que vive apenas na beira de
campinas naturais situadas em meio à floresta existente entre os rios Madeira e
Purus, no Amazonas. “Essa gralha está ameaçada de extinção”, diz Mario
Cohn-Haft, curador da seção de ornitologia do Inpa, principal descobridor do
cancão-da-campina, nome popular cunhado para a ave. “Seu hábitat está em perigo
e podemos perder a espécie antes de ter tido tempo de estudá-la a fundo.” Sua
principal região de ocorrência é um complexo de campinas, distante 150
quilômetros ao sul de Manaus, numa área próxima à rodovia BR-319, que liga a
capital amazonense a Porto Velho. A estrada está sendo reformada e os
pesquisadores temem que o acesso facilitado ao local coloque em risco o hábitat
da espécie. “A nova gralha também ocorre numa zona de campos naturais no sul do
Amazonas, próximo a Porto Velho, onde há muitos colonos do Sul do país, que a
confundem com a gralha-azul [um dos símbolos do Paraná]”, diz Cohn-Haft.
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Poiaeiro-de-chicomendes, nome popular de espécie a ser descrita da família Tyrannidae
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Com exceção
de uma ave da ordem dos Piciformes, que inclui tucanos e pica-paus, as demais
espécies amazônicas agora apresentadas à comunidade científica pertencem à
ordem dos Passeriformes. Popularmente chamados de passarinhos, os membros desse
grupo representam aproximadamente 55% das espécies de aves conhecidas, como os
pardais, canários, bem-te-vis e tantas outras. Além da gralha e do parente distante
dos tucanos, serão descritos no livro cinco espécies da família Thamnophilidae
(na qual se incluem os papa-formigas), quatro da família Dendrocolaptidae
(todas novas formas de arapaçus), três da vasta família Tyrannidae (que
compreende 400 espécies presentes do Alasca à Terra do Fogo) e uma da pequena
família Polioptilidae (composta por menos de 10 espécies, em geral aves
vulgarmente denominadas balança-rabo).
Em termos numéricos, as novas espécies amazônicas representam um
acréscimo de quase 1% na biodiversidade nacional de aves. “Somos o segundo país
com maior número de espécies de aves conhecidas, cerca de 1.840”, afirma Luís
Fábio Silveira, curador do setor de ornitologia do Museu de Zoologia da USP, um
dos coordenadores da iniciativa. “Apenas a Colômbia tem mais espécies do que
nós, aproximadamente 1.900. Mas, daqui a uma década, devemos chegar às 2 mil
espécies de aves conhecidas no Brasil. Há vários exemplares de aves
desconhecidas nos museus brasileiros, oriundos de diversos biomas, que serão
descritos nos próximos anos.”
As aves são o grupo de vertebrados mais estudado da biologia. No
entanto, parece haver muito a ser conhecido, especialmente na Amazônia, ainda
que esse bioma tenha sido alvo de muitas pesquisas nas últimas décadas. “A
biodiversidade em geral, e mesmo a de aves deste bioma, está longe de ter sido
completamente amostrada”, diz o ornitólogo Bret Whitney, pesquisador do Museu
de Ciência Natural da Universidade Estadual da Louisiania e principal
coordenador da empreitada. “Ainda falta muito para a Amazônia ser considerada
suficientemente bem conhecida e, assim, permitir o planejamento e a
sustentabilidade das reservas de biodiversidade já existentes e também das
futuras.” Em paralelo à vida acadêmica, Whitney é sócio de uma empresa de
ecoturismo, a Field Guides, que leva pessoas para observar aves em vários
pontos do globo, inclusive da Amazônia.
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Nova espécie de arapaçu-de-bico-torto |
Algumas das dezenas de expedições feitas pela Amazônia nos últimos 10
anos que levaram à descoberta de novas espécies foram custeadas, parcial ou
totalmente, por um projeto de Silveira financiado pela FAPESP. Outras contaram
com apoio do CNPq, do Ministério do Meio Ambiente, do Programa de Pesquisa em
Biodiversidade do Ministério da Ciência e Tecnologia, de secretarias estaduais
e até da americana National Geographic Society. Numa dessas incursões pela
floresta tropical, no ano passado, duas dezenas de pesquisadores e alunos de
pós-graduação das instituições envolvidas no projeto alugaram durante um mês, por
R$ 75 mil, um barco para percorrer o rio Sucunduri, um afluente do Madeira, em
busca de novas espécies de aves.
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Bico-chato-do-sucunduri |
Em outros momentos, os cientistas precisaram até do apoio de proteção
armada para entrar em regiões que poderiam abrigar novas formas de aves. A
localidade tipo de uma das novas espécies, um arapaçu-de-bico-torto, é a
Floresta Nacional de Altamira, próxima à rodovia BR-163, no sul do Pará. A área
é uma unidade de conservação do Ibama. “Mas, para podermos trabalhar com
segurança na reserva, tivemos de ser escoltados por soldados do Exército
brasileiro. Havia um garimpo ilegal em funcionamento na unidade”, conta Aleixo,
da seção de ornitologia do MPEG. “A tensão de trabalhar num lugar assim é
grande e, não fosse a presença do Exército, não teríamos conseguido.”
Modernamente, o processo de descrição de espécies recém-descobertas
ocorre nas páginas de revistas científicas, não mais em livros. Mas a
importância e a singularidade do conjunto de novas espécies de aves amazônicas
fizeram os editores da enciclopédia e os autores dos trabalhos optarem por um
caminho alternativo. Cada nova espécie foi alvo de um paper
independente, um artigo científico, nos moldes do que seria preparado para um
periódico acadêmico, e a equipe do Handbook contratou os serviços de um
grupo de especialistas para atuar no processo de revisão por pares e aprovação
dos textos com as descrições formais de cada espécie. Para a ciência, o texto
que descreve e batiza com um nome em latim, composto de dois termos (gênero e
espécie), uma nova forma de vida equivale ao atestado de nascimento da espécie.
Serve também como uma documentação fundamental da biodiversidade de uma região,
no caso das aves da Amazônia, e para a formulação de políticas públicas de
caráter ambiental.
http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/05/14/novas-aves-da-amazonia/